O pilão da madrugada

Dona Noca ainda está a espera do seu biografo. Foi a mulher mais dominadora e decidida que conheci. E como mandava… Quando tinha 15 anos, levou-me do Barão a Patos – viagem de dois dias em lombo de burro, que hoje se faz em duas horas de carro – para que passasse lá a festa do padroeiro. Ela admirava minha mãe e transferira ao filho a amizade que as unia.

Fui num comboio de burros que ela própria comandava. No meio da mata, tarde da noite, soou o alarme de ataque. Noca transfigurou-se. Era a líder desassombrada. Em segundos, estendeu o “perímetro de defesa” e cuidou do estado de cada arma e de todos os atiradores. A mim, meteu num buraco, ultraprotegido. No silêncio da noite ninguém se mexia. Não se ouvia outro ruído que não fosse o dos bichos. Felizmente, o rebate era falso, e chegamos em paz a Patos.

Aliás, nessa viagem no comboio de burros, deparei-me pela primeira vez com a generosidade pura, a solidariedade espontânea e desinteressada. No meio da chapada desabitada, ouvi longinquo batido de um pilão, varando a madrugada. Um tropeiro explicou-me o mistério. Três irmãs velhas, a intervalos curtos, faziam, noite após noite, como se pilassem arroz, para que algum viajante extraviado, ouvindo aqueles toques soubessem que ali havia uma casa, onde poderia orientar-se.

*Extraido do livro de Memórias de Neiva Moreira, em depoimento a José Louzeiro, lançado em 1990

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